domingo, 30 de janeiro de 2011

Você faz a dança dos sete véus?

Familiar, não? Pois é. Se você é dançarina do ventre, já deve ter ouvido pelo menos uma vez na vida essa pergunta. É só anunciar seus dotes artísticos para escutar de um mané engraçadinho: "Legal! Você faz a dança dos sete véus?" Geralmente, quem pergunta tem um olhar um pouco malicioso sobre a dança do ventre e está claramente imaginando um striptease.

A pergunta pode até causar surpresa, mas não podemos nos esquecer de como a história de Salomé está ligada à ideia que o mundo ocidental tem da dança do ventre. Se pensarmos bem, não deveria haver espanto algum: a lenda nos conta a história de uma mulher bonita, talentosa e... fatal (uhh!). Salomé daria uma ótima vilã de um filme do James Bond, não acham?

Sem mais delongas, resolvi buscar na internet algumas informações sobre esse mito. Assim, da próxima vez, a pergunta sobre a dança dos sete véus vai até te render um bom papo.

A lenda

Após um caso de adultério entre Herodias (ou Herodíade) e seu tio (ou cunhado) Herodes Antipas, ambos se divorciam de seus cônjuges para que possam se casar. João Batista protesta publicamente contra o casamento, em parte porque ambos eram divorciados e porque casar com o irmão do ex-marido era visto como incestuoso.

Herodes Antipas pressiona João Batista a parar com os protestos, mas não o condena à morte por temer represálias por parte das massas, que acreditavam que João era um profeta. Herodias detestava João pois ele condenava publicamente a sua união com Herodes Antipas, chamando-a de "casamento adúltero".

Herodias tinha uma filha chamada Salomé, de seu primeiro casamento, que morava com ela e seu novo marido em seu palácio.

Durante a festa de aniversário de Herodes, a jovem e bela Salomé dança para o marido da mãe e seus convidados, despindo-se de cada um dos sete véus até que não sobre quase nada (ou nada) cobrindo seu corpo. Herodes fica tão satisfeito com sua apresentação que faz um juramento solene na frente de todos os seus convidados: ele promete dar à jovem o que ela quiser. A pedido da mãe, Salomé pede a cabeça de João Batista. Embora Herodes não quisesse fazê-lo, sentiu que tinha de cumprir o juramento que havia feito perante todos. Assim, ele ordena que João Batista seja decapitado e sua cabeça entregue à Salomé.


O que a Bíblia diz

Mateus 14:6-11

Festejando-se, porém, o dia natalício de Herodes, dançou a filha de Herodias diante dele, e agradou a Herodes.

Por isso prometeu, com juramento, dar-lhe tudo o que pedisse;

E ela, instruída previamente por sua mãe, disse: Dá-me aqui, num prato, a cabeça de João o Batista.

E o rei afligiu-se, mas, por causa do juramento, e dos que estavam à mesa com ele, ordenou que se lhe desse.

E mandou degolar João no cárcere.

E a sua cabeça foi trazida num prato, e dada à jovem, e ela a levou a sua mãe.


Marcos 6:21-28

E, chegando uma ocasião favorável em que Herodes, no dia dos seus anos, dava uma ceia aos grandes, e tribunos, e príncipes da Galiléia,

Entrou a filha da mesma Herodias, e dançou, e agradou a Herodes e aos que estavam com ele à mesa. Disse então o rei à menina: Pede-me o que quiseres, e eu to darei.

E jurou-lhe, dizendo: Tudo o que me pedires te darei, até metade do meu reino.

E, saindo ela, perguntou a sua mãe: Que pedirei? E ela disse: A cabeça de João o Batista.

E, entrando logo, apressadamente, pediu ao rei, dizendo: Quero que imediatamente me dês num prato a cabeça de João o Batista.

E o rei entristeceu-se muito; todavia, por causa do juramento e dos que estavam com ele à mesa, não lha quis negar.

E, enviando logo o rei o executor, mandou que lhe trouxessem ali a cabeça de João. E ele foi, e degolou-o na prisão;

E trouxe a cabeça num prato, e deu-a à menina, e a menina a deu a sua mãe.


Alguns detalhes merecem atenção:

*A Bíblia não diz que o nome da filha de Herodias era Salomé. O nome surgiu a partir dos escritos de Josefo, historiador e apologista judaico-romano.

*A Bíblia não especifica que tipo de dança ela fez e se Salomé usou véus, tirou a roupa ou fez algo no estilo sedutor. Tais interpretações da história vêm de outras fontes.


O texto original da Bíblia

De acordo com o artigo "God Belly Danced, Part III" de Qan-Tuppim, do site The Gilded Serpent, a palavra original grega usada no Novo Testamento para se referir à Salomé é korasion, que significa "menininha ainda não crescida o suficiente para ter seios ou menstruar". Já a palavra utilizada para a dança feita por Salomé no original é orxeomai, que não significa dança, mas algo como "brincadeira de criança". Baseado nisso, Qan-Tuppim conclui que Salomé era provavelmente apenas uma adorável menininha, a Shirley Temple de sua época.




Mas então de onde vem a tal dança dos sete veús?


Se a Bíblia não ligava a morte de João Batista a uma sedutora striptease envolvendo sete véus, de onde essas ideias vieram? E como elas se relacionaram com a Dança do Ventre?

No final da década de 1890 e na primeira parte do século XX, escritores e pintores do movimento de arte europeu conhecido como Orientalismo ficaram fascinados pelo Oriente Médio. Esses artistas viram na história de João Batista um prato cheio para suas criações, com todos os elementos que interessavam o público: conotações sexuais (a dança, que eles escolheram interpretar como sedutora), assassinato, política, adultério, e a conexão com a Bíblia que tornou, de certa forma, a história mais aceitável para ser contada numa sociedade conservadora.

Há ainda quem acredite que a Dança dos Sete Véus tem origem em um dos mitos de Ishtar, que conta a descida da deusa da mitologia mesopotâmica ao mundo dos mortos. Como curiosidade, fica aqui o conto:

"A deusa empreende esta jornada em busca de Tammuz, seu amado, que havia morrido em um moinho de grãos. No mundo dos mortos, Ishtar é obrigada a atravessar sete portais e a deixar, em cada um deles, um ornamento ou peça de sua vestimenta. [...]

Quando Ishtar ressurge dos abismos, a vida renasce na terra, os campos se cobrem de relva verde e nos rios volta a correr água abundante. A dança dos sete véus é por vezes associada a essa passagem da mitologia de Ishtar, sendo esta uma da mais famosos, belos e misteriosos ritos primitivos.

Esta dança não era praticada em ritos de fecundação como muitos acreditam; mas pelas sacerdotisas dentro dos templos da Deusa Egípcia Ísis; posterior à Ishtar mas com clara influencia cultural da mesma. A sacerdotisa oferecia a dança para a Deusa que dentro dela existe, e lhe da beleza e força.

Essa dança era realizada em homenagem aos mortos. As sacerdotisas, em seus templos, retiravam não só os véus, mas todos os adereços sobre o seu corpo, para simbolizar a sua entrada ao mundo dos mortos sem apego a bens materiais – neste caso, em uma clara analogia à Ishtar.

Determinada, Ishtar atravessou os sete portais do submundo, e em cada portal deixou um de seus pertences: um véu ou uma jóia (cada um deles representando um de seus sete atributos: beleza, amor, saúde, fertilidade, poder, magia e o domínio sobre as estações do ano). O véu representaria o o que ocultamos dos outros e de nós mesmos. Ao deixar os véus Ishtar revela sua verdade e consegue unir-se a Tamuz." (Trecho retirado de http://vinhoecigarros.blogspot.com/2007/09/deusa-ishtar-2000-ac.html)

A peça de Oscar Wilde

No outono de 1891, o dramaturgo irlandês Oscar Wilde escreveu uma peça intitulada Salomé. Em 1892, ele a mostrou a Sarah Bernhardt, que imediatamente quis organizá-la e interpretar seu papel-título. Eles ensaiaram, mas foram forçados a abandonar o projeto quando o governo britânico lhes negou a licença. Motivo: a peça violava uma antiga lei da era puritana que proibia a representação pública de personagens bíblicos.

Finalmente, em 1896, a peça foi produzida na França, que não seguia tais leis. Em 1902, a peça foi apresentada em Berlim, com grande sucesso.

A peça de Wilde retrata Salomé como uma personagem bizarra e um tanto malvada, que fica obcecada por João Batista, mas em seu script, pode-se notar que não há nada que especifique que a dança de Salomé deva ser sedutora ou que ela deva se despir de sete véus. Apesar disso, é possível que Wilde tenha instruído o diretor para que interpretasse o script dessa forma.


A Ópera de Strauss

Inspirado pela peça de Oscar Wilde, Richard Strauss, compositor e maestro alemão, compôs uma ópera baseada na história de Salomé. A ópera popularizou ainda mais a versão de Wilde para a história e promoveu uma espécie de apelo sexual, durante uma época sexualmente reprimida, quando a "arte" era o único veículo publicamente aceitável para retratar a nudez.


Enquanto isso, nos Estados Unidos...

Em 1893, a Dança do Ventre suscitou seu próprio escândalo na Exposição de Columbia, em Chicago (World's Fair). Os americanos assistiram chocados a dançarinas que mexiam o corpo de uma maneira que os espartilhos da moda local nunca tinham permitido (!). Um dos promotores do evento, Sol Bloom, chamou essa "dança escandalosa" de belly dancing (dança do ventre), e é com esse nome que a dança oriental é conhecida no Ocidente até hoje.

O Circuito de Vaudeville abraçou alegremente o interesse do público despertado pelo escândalo e criou sua própria interpretação da Dança do Ventre, chamada de "hoochy coochy". Nas décadas seguintes, esta acabou se tornando o striptease moderno.

Logo, os filmes de Holywood que se seguiram mostraram suas próprias interpretações de Salomé e contribuíram para construir a ideia da "Dança dos Sete Véus". Logo abaixo, Rita Hayworth como Salomé:



Na mesma época, Isadora Duncan experimentava as ideias do Oriente Médio para criar suas coreografias. Fã dos tecidos fluidos como a seda e o cetim, Isadora geralmente usava vestidos e lenços feitos desses materiais em suas apresentações.

Tudo isso acabou relacionando "dança do ventre" a "véus esvoaçantes" na cabeça dos europeus e dos americanos que iam ao teatro.


Mas então, alguém já fez realmente a Dança dos Sete Véus no Oriente Médio?

Como todos devem saber, no Oriente Médio, o véu era (e ainda é) uma peça modesta usada para proteger uma respeitável mulher mulçumana dos olhos curiosos dos homens estranhos. Seria inaceitável usar um "véu" como acessório em um espetáculo de dança. Ainda mais se a dançarina se despisse de sete veús até ficar completamente nua no palco!

Antes do século XX, as mulheres no Oriente Médio dançavam completamente vestidas e em trajes comuns, cotidianos. Não havia uma "roupa para dança". As dançarinas que se apresentavam em casamentos, festas de dias santos e outros eventos simplesmente usavam o mesmo tipo de roupa que as outras pessoas.

As casas noturnas surgiram no Egito e no Líbano na primeira metade do século XX para saciar a ânsia que os visitantes britânicos, franceses e outros europeus tinham de ver as dançarinas locais. Para atender às suas expectativas, as dançarinas começaram a adotar o tipo de roupa que Hollywood inventara: o conhecido conjunto bustiê-cinturão-saia. Mas ainda assim as dançarinas não faziam qualquer tipo de dança com véu.

Na década de 40, Samia Gamal entrou no palco com um longo tecido. Esta é considerada a primeira ocorrência registrada de uma dançarina "realmente" oriental usando um tecido do tipo como acessório de dança. Samia fez isso porque, na época, tinha aulas com Anna Ivanova (famosa bailarina russa), que sugeriu que sua aluna usasse o tecido para melhorar o movimento dos braços.

É importante ressaltar que nem Samia Gamal e nem as dançarinas egípcias que mais tarde seguiram seu exemplo se referiram a esses tecidos como "véus". Elas nunca se despiram deles durante uma apresentação. Em vez disso, as dançarinas egípcias seguram o tecido ao entrar no palco, giram com eles e o descartam antes de começarem a dança principal.


Conclusão


A "Dança dos Sete Véus" nunca fez parte das tradições do Oriente Médio e não é realizada por lá até hoje. Ela foi criada pela mente dos europeus e foi preservada graças à indústria do entretenimento. Porém, ainda hoje, o público em geral acredita que a Dança dos Setes Véus foi apresentada por Salomé a Herodes, ainda que a Bíblia nunca tenha dito isso. Graças à peça de Oscar Wilde, à ópera de Strauss e aos vários filmes de Hollywood que descrevem Salomé, a ideia parece realmente ter vindo para ficar.

Atualmente, muitas dançarinas têm criado releituras para a Dança dos Sete Véus e, é claro, não há nada de errado em usar de nossa "licença poética" para criar nossas próprias interpretações para esse mito. O processo criativo de buscar outras formas de se dançar com os sete véus e fazer uma apresentação ser vista como uma expressão artística, e não como um striptease ou mais uma repetição enfadonha de modelos já vistos, pode se tornar bastante gratificante para uma dançarina.

É importante que se conheça o contexto histórico em que essa dança surgiu, pois, dessa forma, saberemos também identificar que tipo de público vai responder bem a uma apresentação e que tipo de plateia vai achar tudo muito esquisito ou pensar que vai assistir a um striptease, sem valorizar a nossa arte.

A seguir, a interpretação da dançarina Najla al Hafsa para a Dança dos Sete Véus.



Fontes: Shira.net
Bíblia Online
Vinho e Cigarros
The Gilded Serpent

14 comentários:

Monika Soarez disse...

Muito legal Tina!
Eu li e queria agradecer por compartilhar!
Sigo seu blog e recomendo sempre para minhas alunas.
Obrigada.

Suelen disse...

Adorei o texto. Você não imagina como eu gostaria que essas informações pudessem chegar a todas as pessoas e assim, que sabe, existir menos preconceito e menos caras maliciosas...

DRICCA disse...

OLA

Muito interessante a sua pesquisa, eu já comentei sobre esse assunto em meu blog, não falei no assunto com profundidade como vc, realmente é uma pergunta que para quem dança encomoda muito.

beijo

www.darahhamad.com.br disse...

OBRIGADA CELIA POR COMPARTIHAR CONOSCO ESTAS INFORMAÇÕES QUE FARA PARTE DAS ORIENTAÇÕES QUE TRANSMITO AS MINHAS ALUNAS,
DARAH HAMAD

Anônimo disse...

Legal gostei bastante! Parabéns! a figura da femme fatale está sempre relacionado ao mal feminino. Acredito também que a fantasia dos sete véus vem de algumas lendas populares em que a deusa Isis teria sete véus, em meio a tantas informaçõesos ocidentais do sec XIX recriaram seu imaginario a respeito da danca! )O(

Camila Flavia disse...

Oi Célia! Acabo de retornar à Blogosfera e encontro esta tua postagem simplesmente maravilhosa. Parabéns pela tua seriedade e pela qualidadedo teu blog. Bjs
Ah vamos marcar a sessão de mehandi!

Hanna Aisha disse...

Querida

Que pesquisa fantástica! Obrigada pelo trabalho!

Como eu não sigo a linha esotérica de DV, não me decepcionei, aliás, só reforçou o que eu já tinha aprendido.

Beijos

Lívia Carine disse...

Nossa Célia que demais! Parabéns! Adorei o texto. Muito legal saber daonde veio essa idéia, não sabia desta!

Palmira Margarida disse...

nossa....esse blog é muitooooo bom, tô seguindo vcs.
Me interessei muito!!!
Eu faço perfumes e aromas especiais para dançarinas do ventre, para os véus...uma loucura!!
bjos.
Se possível me faça uma visita

Unknown disse...

Muito obrigada por esse post maravilhoso e elucidativo! Esse blog está realmente de parabéns!

Tina disse...

Nossa, fico super feliz de saber que todas vocês ficaram satisfeitas com o post. Obrigada, meninas! :)

Unknown disse...

Muito bom texto, a tempos procuro algo de cunho mais acadêmico, que seja imparcial e com referências para trazer conteúdo mais sério às minhas alunas. Não conhecia o blog, belo trabalho, obrigada por compartilhar

Unknown disse...

Vou postar o texto no meu blog, fiz algumas alterações para passar para minhas alunas, fiz as citações no final, mas não sei se você se importa de ter postado e modificado, então qualquer coisa me avise que eu tiro ou modifico o texto no blog, ok.
Obrigada

Luana - luanabailarina.multiply.com

Melissa Souza disse...
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