
Muitas pessoas ficam meio sem entender como nos
países árabes, expostos pela grande mídia com aquelas
mulheres sob burkas, política fundamentalista e "homens terroristas", poderia ter uma arte como a
dança do ventre. Hoje vocês vão ter uma mini-aula de história contemporânea! :p

Primeiramente, o nome "
dança do ventre" no
mundo árabe não existe. "Dança do ventre" é uma criação francesa para designar a
Dança Oriental, a Raqs Ash-sharqi. Logo, dizer que a
dança do ventre é uma arte feminina porque só mulher tem ventre é a reprodução de um
preconceito orientalista criado no séc. XIX. O termo "
dança do ventre" acabou por abarcar não só a "dança das odaliscas", como também as expressões culturais de cada região, massificando num só nome estilos de diversas regiões e posteriormente países.

A
dança oriental sempre esteve presente na
cultura árabe, mas é claro que ela variava conforme o local que aparecia. A
dança oriental que hoje chamamos de dança do ventre é em grande parte uma herança egípcia, e estava relegada aos círculos familiares, pouco aberta a grandes exposições. Esta dança foi completamente absorvida pelo
Império Turco Otomano, mas nele ganhou outra conotação, passando a ser tanto uma prática familiar, como uma prática artística, na qual
dançarinas e dançarinos se apresentavam em festas, eventos imperiais e até mesmo para receber chefes de Estado que visitavam o Império.
Dessa forma, a dança oriental teve uma grande expressão no mundo árabe, e posteriormente na época do Imperialismo, pelo mundo europeu. No mundo árabe percebemos a grande influência no Líbano, ainda que lá não seja tão marcante e característica quanto no Egito (o dabke é muito mais tradicional no Líbano que a dança do ventre propriamente dita), e também na Turquia, a atual herdeira do Império Turco Otomano.

Na época do
Imperialismo, antes mesmo do fim do Império Turco Otomano, a França e a Inglaterra literalmente dividiram entre si as
regiões árabes. Com a desculpa que as administrariam para se modernizarem (alguém lembra do caso do Iraque e do Afeganistão?), tomaram-nas como posses, o que gerou muitas revoltas, ocorrendo entre a década de 20 e 40 a maior parte das independências dos recém-países árabes, como a do Egito. Pra que estou contando isso? Essa presença ocidental é fundamental para a forma como a
dança do ventre se moldará ao longo do séc. XX!
Sendo assim, vou me ater ao Egito para facilitar a visão deste momento. Ahhh, o Egito! A Inglaterra deu a independência ao Egito em 1922, mas quem disse que ela saiu de lá? A influência britânica foi extremamente forte até o início da segunda onda do nacionalismo egípcio na década de 50.

O que temos neste intervalo, digamos, entre as décadas de 30 a final da 40 na
dança do ventre egípcia? Os famosos cabarés! Aqueles filmes de
dança do ventre, pelos quais hoje conhecemos nomes como Samia Gamal,
Tahia Carioca, etc? É literalmente a
Era de Ouro da Dança do Ventre. Nessa época até mesmo eram poucas as mulheres que usavam véu nas cidades, como conta a escritora
Nawal Saadawi no livro "
A Face Oculta de Eva". Havia uma ocidentalização forte no Egito, a
dança do ventre na maior parte das vezes era para entreter turistas, mas também era uma forma de exportação da
cultura egípcia, algo que muitos egípcios valorizavam e tinham orgulho.
Bem, aí a coisa começou a mudar: a
Palestina foi repartida para dar lugar ao Estado de Israel em 1948. Comoção no
mundo árabe!

Uma das explicações para isso ter acontecido foi o desvirtuamento da fé que os países árabe-islâmicos haviam se submetido ao absorver valores ocidentais. A
dança do ventre começou a perder espaço gradativamente, o uso do véu começou a voltar com força nas grandes cidades, várias pessoas passavam a exprimir asco e revolta ante os
valores ocidentais que antes se faziam presentes nos grandes círculos da
sociedade. Os
países árabes ainda tentaram retomar os territórios da Palestina, mas foram derrotados (
espiões israelenses descobriram a tática de guerra deles pouco antes do confronto), o que gerou ainda mais essa necessidade de retorno à
fé, aos verdadeiros valores islâmicos. Para piorar na Guerra dos Seis dias, em 1970 Israel invadiu e ocupou a Península do Sinai, território egípcio, que só foi devolvida através de um tratado de paz em 79. O que aconteceu então? Egito expulso da Liga Árabe, presidente assassinado por um fundamentalista, Egito na mão de
Hosni Mubarak. O resto a gente conhece pelos noticiários...
Essa situação também é narrada no livro autobiográfico da dançarina egípcia Dina (Ma Liberté de Danser), que só tomei conhecimento depois de contar para a Lívia o que conto a vocês neste post, sobre a mudança da imagem da dança do ventre no mundo árabe. Essa volta ao conservadorismo aconteceu em todo o mundo árabe, até mesmo no Líbano que é cristão! A dança do ventre fora dos círculos familiares passou a ser vista como haram (ilícito), como uma importação e não com expressão da cultura egípcia, e até mesmo árabe!

Com o tempo, a
tradição das dançarinas na vida cotidiana da sociedade egípcia deixou de ser comum. Ano passado, por exemplo, meu amigo Mohamad Khairy se casou com minha amiga Weasal lá no Cairo, e ele me convidou para dançar no
casamento dele. Tipo: isso era
tradição anos atrás!! Mas eu fiquei chocada e perguntei a ele se os convidados não ficariam incomodados, a resposta dele foi: "
Não, mas eles vão estranhar. Só que eles sabem quem eu sou e como minha família é, e não vão pensar mal de mim e de minha esposa". Pensar mal por quê, né? Pois alguém já viu o vídeo de uma
dançarina do ventre super over deixando a noiva morta de vergonha? As
dançarinas divas que vemos por aí como Soraia Zayed, Dina,
Randa Kamel, não dançam pro povo, baby, elas dançam pra
ricaços e principalmente pros turistas.

Hoje em dia eu tenho as minhas dúvidas se a
dança do ventre ainda vai ter espaço no meio de entretenimento
egípcio. Se vocês não sabem, a maioria do parlamento eleita recentemente é da Irmandade Islâmica, e a intenção deles é instituir a
charía como lei constitucional. A minha amiga Esraa de Alexandria diz que o
Egito não vai virar uma Arábia Saudita, mas eu tenho minhas ressalvas. Ah sim, cabe lembrar que essa imagem que vemos na TV é super deturpada, homens-bomba, terrorismo, etc, nada tem a ver com uma
volta à religião, a sua ação é totalmente motivada por uma
questão política, e não religiosa (como vocês poderão entender
aqui).
No entanto, a dança do ventre no meio familiar anda fortalecida no Egito. As mulheres andam de niqab na rua (aquele véu que só deixa os olhos à mostra), depois passam na Khan el Khalili (ou seus maridos), compram uma roupa de dança do ventre ou um xale de medalhas, e vão pra casa dançar! Eu mostro meus vídeos para elas, elas gostam, dão opinião, dicas, etc, a dança do ventre nesse ponto acredito que nunca vai morrer! Inshallah!
E aqui esse vídeo que acho ótimo para ilustrar a sociedade egípcia da era de ouro da dança do ventre:
O menininho dançando a la Tito Seif, as mulheres de pernas de fora e sem véu, roupas ocidentais, uma dançarina do ventre do povão beeem diferente do que vemos quando buscamos no youtube.